Era uma casa muito engraçada

A casa é mais que uma construção para abrigar. Casa é o território, o meu lugar no mundo, o meu mundo no mundo. Casa é o segundo útero, é o lugar que vai proteger o meu sentimento de estar vivo e alimentar a minha descoberta do mundo.
A Casa da infância é para sempre…
Muito mais que alvenaria e argamassa, Casa é cheiro. Casa é o cheiro de café da manhã me dando “Bom dia!”; é o perfume do travesseiro, que guardava meus segredos; o cheiro do bife que só a mãe sabe preparar; o perfume do dia de limpeza e o cheiro da pipoca.

Casa não é desenho, Casa é escultura. Casa é a textura lisa e gelada do azulejo, onde me apoiava para escalar as paredes do corredor. É a quina do muro que insistia em ralar minha canela; a maçaneta da porta que emperrava e prendia meu dedo no batente. Casa é o piso gelado, o cimento do quintal onde eu sentava para preparar comidinha e brincar de gente grande.

Mais que fundação e estrutura, Casa é a janela do meu quarto, que emoldurava o mundo lá fora e revelava todas as possibilidades da existência, só para alimentar minha imaginação sedenta de aventuras e descobertas. É a luz que invadia todo quarto, quando minha mãe entrava de repente, abria as cortinas e anunciava que o dia estava começando. Casa são os detalhes da torneira, do batente arranhado, da umidade da parede, do vidro quebrado…

Mais que paredes e forros, a casa são as risadas, a voz da minha mãe cantando boleros, ou o som do violino do meu pai. Casa são os barulhos da infância, as vozes que anunciavam – “O almoço está na mesa.”, “Entra porque já está tarde.” E o aviso sinistro – “Abre a porta ou, vai ser pior.” A Casa são os passos das assombrações que aterrorizavam as minhas noites; os estalos, a porta rangendo e frustrando minha chegada silenciosa, ou o barulhinho da chuva no telhado, embalando meu sono.

Mais que cobertura, caixilharia e revestimentos, a Casa é o sabor da rabanada, do bolinho de chuva, pipoca e mingau na cama, que curava tudo até a doença que não existia. Casa é o gosto do molho da macarronada do domingo, a cobertura do bolo de aniversário, o pão com manteiga molhado no café com leite.

Nós queremos aprender e ensinar a construir casas, porque para milhões de pessoas, a Casa é cheiro de esgoto e miséria; Casa é madeira podre que corta quem encostar nela; Casa é depósito de gente, sem janelas, são os ratos passeando pelo berço em busca de comida-gente; Casa são estalos de paredes, anunciando que tudo vai cair, são os gemidos assustados, as orações desesperadas e os talheres batendo nos pratos vazios.
Míriam Morata Novaes, arquiteta

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